PROMETO-TE UMA OUTRA GRÉCIA E ENVIO-TE UM CARRO FÚNEBRE









                                       
                                           ESTA SEXTA
O ÚLTIMO MERGULHO - de João César Monteiro


“Prometi-te uma outra Grécia e em vez disso mando-te um canto fúnebre (...) encontra em ti o teu próprio consolo”



Encontramos-nos à deriva pelas margens dum centro, numa cidade em pano de fundo que aos olhos de uns  se vai afogando numa qualquer esperança de um dia se encontrar nomeada e colocada num mapa, inserida numa qualquer ordem estipulada, decifrável e facilmente lida, sem rugosidades e escarradelas no chão. A cidade que nos surge em “O último mergulho” de João César Monteiro é a  das profundezas de quem a vive, do barco atracado no rio à tasca do amanhecer, dos caminhos trôpegos das escadarias das ruas e das pensões do 2º andar, das deambulações sem tempo nem propósito. É cidade com corpo dentro, puta,  sensual e cansada, onde o cansaço é do corpo que trabalha mas também que a goza até de manhã para descansar as pernas num banco improvisado.

Uma cidade que mata a sede em fontes públicas, que se olha em espelhos suspensos em paredes descascadas e se ilumina em curto-circuitos. Neste caso é a de Lisboa, ruína sobre ruína que, de lá para cá, vai perdendo o pulso da sua existência. Poderia ser outra como outras em transformação, ou já transmutadas em parques temáticos, longe da vida,  onde se encenam imperiais relações pacíficas onde a paz raramente habitou, pois o fígado sempre foi sendo corroído. Aqui, onde as ruas foram ganhando os caminhos das fugas ou dos naufrágios, amorosos, da graça e da desgraça, da mesquinhez e da solidariedade manhosa. Agora limpam-se os abismos, iluminam-se os becos, tapam-se os buracos, terraplenam-se as vidas e ganha-se o orgulho alheio.

Para que ninguém se afogue, ordenam-se os factores, dá-se a transformação prometida em nome das comodidades que irão resolver todas as nossas lacunas, uma existência que se vende maquilhada, uma solução longe das nossas mãos mas que tudo irá resolver. Do reumático ao criativo, do biológico ao sustentável, do higiénico ao autêntico. Faz-se o discurso da segurança e do conforto, como se os acidentes e os imprevistos se controlassem em gabinetes. E a nossa vida aqui no meio, onde é que se encontra? Falamos para além do filme, das imagens que nos remetem à nossa existência, vivida aqui por uns e por outros noutros sítios onde os pulsares sempre foram incontroláveis, onde ao controlo lhe custou espreitar e que, assim sendo, prefere esconder. O centro dá agora lugar ao olhar periférico, abre as portas ao turista fascinado pelo reconhecimento das fachadas e destas estranhas formas de vida...É bom para o negócio, bom para o progresso da zona, sabe-se lá o que vai acontecer mas eles têm é de vir... As rendas sobem, os preços aumentam, é necessária a licença para montar, trabalhar, para vender, os alpendres deixam de crescer consoante a festa que lá se faz, a rua esvazia-se de estares para se encher de comprares, as placas de rua normalizam-se, a vizinhança desmorona-se na reconstrução. O espaço fecha-se a quem o habita, toma uma forma onde estes não cabem, torna-se-lhe estranho e impossível ou então engloba-os como se de uma redoma se tratasse. A quem o habitava resta o subúrbio. E nós à nora, a ver se percebemos o nosso lugar, como nos colocamos na voracidade daquilo que intuímos que irá acontecer correndo o risco de corremos com a corrente sem saber a altura certa para saltar fora.

Encontramos-nos então onde o passado presente ganha o lugar de um museu paralisado, como se nada nunca nos tivesse pertencido, onde tudo se torna recuperadamente intocável com medo de não se inserir no padrão original ,como se a sua origem não tivesse surgido de uma fonte de desenrascanços onde a necessidade se alimenta do instinto, da perícia e da preguiça. E não é a nostalgia que nos remete para aqui, trata-se sim da impossibilidade de um presente que dificilmente foge à histeria da modernidade, da categorização, da profissionalização e da requalificação. Trata-se de uma memória que aqui procuramos construir para assim criarmos o nosso chão, terreno de batalhas e histórias futuras, descobertas para além do reconhecimento.

e com isto, o que é que vai desaparecer?